Abusos Sexuais no Yoga
Por Pedro Kupfer
Na esteira de uma série de recentes escândalos envolvendo condutas criminosas por parte de famosos professores de Yoga, cabe uma reflexão aqui para voltarmos ao básico do básico.
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Aos poucos, a nossa comunidade está acordando para a incômoda realidade dos abusos sexuais no Yoga.
Parece que temos um problema sério, tanto com a testosterona como com o machismo no Yoga.
Porém, não folga lembrar que um professor de Yoga decente nunca oferece massagens com conotações sexuais para as suas alunas.
Um professor de Yoga decente nunca faz ajustes ambíguos ou constrangedores.
Um professor de Yoga decente nunca toca de maneira inapropriada às suas alunas durante o relaxamento.
Um professor de Yoga decente nunca faz ajustes sobre ou perto das zonas erógenas das suas alunas.
Um professor de Yoga decente nunca coloca a língua na orelha das alunas. Se seu professor de Yoga fizer algo disto é um farsante: denuncie-o e caia fora.
Na esteira de uma série de recentes e tristes escândalos de abusos e condutas sexuais inapropriadas por parte de alguns famosos professores de Yoga no mundo inteiro, cabe uma reflexão aqui para voltarmos ao básico do básico, bem como para não perdermos a bússola ética nos mares turbulentos em que o Yoga navega atualmente.
A debacle da testosterona
Abusos, assédio e tortura psicológica são palavras que apareceram não somente em blogs de Yoga mas também na grande mídia internacional, associadas às infelizes atitudes dessas pessoas, que precisam urgentemente de assistência psiquiátrica mas que, para nosso horror, estão de volta aos negócios depois de algumas poucas semanas de silêncio e afastamento tático para esperar a poeira assentar.
Vamos citar aqui apenas um exemplo. Um desses abusadores, Kausthub Desikachar, neto do célebre guru Krishnamacharya e filho de TKV Desikachar, chegou ao cúmulo de criar uma ONG em Chennai para “curar” pessoas com traumas vinculados à violência sexual.
Essa instituição chamava-se Krishnamacharya Healing and Yoga Foundation. O “dr.”Kausthub (também apresenta-se falsamente como médico) fundou essa entidade unicamente com o intuito de atrair vítimas já traumatizadas, para se aproveitar delas.
Essa instituição chamava-se Krishnamacharya Healing and Yoga Foundation. O “dr.”Kausthub (também apresenta-se falsamente como médico) fundou essa entidade unicamente com o intuito de atrair vítimas já traumatizadas, para se aproveitar delas.
A veracidade destas afirmações sobre os abusos de Kausthub Desikachar pode ser conferida aqui, aqui, aqui e aqui.
Porém, escassas semanas depois do estouro do escândalo, sem sequer rosear de vergonha, esse criminoso já estava de volta aos negócios, usando o nome de outra instituição. O povo tem memória curta.
Porém, escassas semanas depois do estouro do escândalo, sem sequer rosear de vergonha, esse criminoso já estava de volta aos negócios, usando o nome de outra instituição. O povo tem memória curta.
Outros, tanto no nosso país como fora dele, oferecem suspeitas “massagens terapéuticas para abrir os cakras“, abusam da sua posição de poder enquanto professores e ajustam suas alunas de maneiras constrangedoras e inapropriadas, criando um clima de insegurança e medo dentro da sala.
Para os que ostentam essas atitudes, o que vale é não perder as oportunidades de negócio e satisfação dos desejos que o Yoga pode oferecer. Tudo em nome do lucro e a sede de poder.
Para trás ficam as vítimas, com seu sofrimento, seu silêncio e seus pesadelos, como cascas de laranja descartadas depois do seu suco ter sido espremido.
A pessoa que consciente ou inconscientemente olha para os outros como fontes de satisfação dos seus próprios apetites, recolhe o sofrimento dos demais, bem como a sua própria frustração.
Bad karma: essas pessoas não estão apenas sujando o bom nome do Yoga e daqueles que o ensinamento, mas igualmente cometendo graves crimes.
O pior é que estes casos recentes se somam a uma já longa lista de falsos mestres e professores que ao longo das últimas décadas têm agido como se estivessem acima do bem e do mal e cujos atos incluem todo tipo de atropelo do dharma.
O cinismo e a frieza das pessoas que cometem esses abusos é de gelar o sangue nas veias. acobertando-se sob o véu da espiritualidade, usam uma linguagem sedutora para cativar e escravizar corações, corpos e mentes.
O presente texto se centra apenas no aspecto da distorção da sexualidade nas relações professor-aluno no âmbito do Yoga e nas possíveis soluções que o próprio Yoga propõe para resolvê-la. Deixaremos os demais aspectos desse tema para um texto futuro.
A provável causa
O Yoga do título não é mais uma invencionice de algum maluco, como as tantas que nasceram recentemente. Ele existe mesmo: é o bom e velho Haṭha Yoga.
Pesquisas feitas por cientistas indianos e russos comprovaram recentemente que práticas de āsana e prāṇāyāma elevam dramaticamente os níveis de testosterona, o hormônio responsável, dentre outras coisas, pelo prazer sexual, tanto em mulheres como em homens.
Enquanto isso, as mesmas pesquisas apontam para uma diminuição, também importante, nos níveis de cortisol no organismo.
Cortisol é o hormônio que eleva a pressão sanguínea e o nível de açúcar no sangue para preparar o indivíduo para lutar ou fugir.
Noutras palavras, o hormônio do estresse. Assim, teremos uma mudança difícil de se ignorar no sistema endócrino de qualquer ser humano que se dedique à prática do Haṭha Yoga: por um lado, a prática pode aumentar o desejo sexual; por outro, diminui os índices de estresse.
Nós temos a suspeita de que os abusos acima mencionados podem ter sido causados, pelo menos em parte, pelo aumento nos níveis de testosterona, aliado à incapacidade dessas pessoas em lidar com seu desejos e condicionamentos ea uma atitude de absoluta frieza em relação às suas vítimas.
Senão fosse assim, como poderíamos explicar essas situações, que encheram páginas e mais páginas na mídia com os infelizmente cada vez mais frequentes guru sex scandals?
Abusos, abusos, abusos, abusos e mais abusos, a lista que pode ser encontrada neste artigo da Wikipedia sobre o tema é chocante e deprimente ao mesmo tempo.
A válvula de segurança
Sabendo que havia um perigo potencial inerente às práticas, os sábios da antiguidade dotaram o Yoga de um mecanismo de segurança que permitisse aos praticantes lidar da maneira mais saudável com essa mudança hormonal e os potenciais perigos inerentes a ela: a prática de brahmācārya um dos preceitos fundamentais da conduta yogika.
Esse voto aparece em todos os śāstras, do Yogasūtra à Bhagavadgītā, das Upaniṣads à Haṭha Yoga Pradīpikā, e abrange dois aspectos que devem ser bem compreendidos:
1) como se relacionar com os próprios desejos, e
2) como se relacionar emocionalmente com outrem.
2) como se relacionar emocionalmente com outrem.
Esses dois são pontos fundamentais que precisam ser assimilados se quisermos levar a bom porto a nossa prática.
Dessa maneira, a conduziremos de maneira saudável para nós mesmos e, mais importante ainda, para os demais, cultivando o respeito, a consideração e a capacidade de se colocar no lugar do outro, para evitar vitimizar alguém, mesmo que de maneira involuntária.
A luz no fim do túnel
Para aqueles que consideram que não precisam assumir um voto de castidade (a maneira mais frequente de traduzir brahmācārya) existe outra forma de interpretar esse princípio: coerência relacional ou ainda, fidelidade nos relacionamentos, ou ainda, contenção e autocontrole para não ofender nem ferir ninguém.
De uma forma mais ampla ainda, podemos definir brahmācārya como moderação, conduta virtuosa ou comando sobre os desejos.
Considere o amigo leitor que essa atitude não precisa se restringir apenas a uma relação afetiva entre duas pessoas, mas pode ainda se estender a todos os relacionamentos, mesmo aqueles que não incluem necessariamente envolvimento emocional ou contato físico.
Não estamos aqui falando em repressão dos impulsos sexuais, nem propondo que seja necessário eliminar ou ignorar os desejos, mas dar a essa pulsação sexual uma vazão saudável e construtiva, de maneira que ela possa funcionar, não como um obstáculo, mas como uma força que nos ajude no processo do Yoga.
Esta força precisa ser bem gerida e direcionada, e deveria ser usada em função do objetivo supremo do Yoga, que é mokṣa, a libertação.
Para tanto, a solução passa por aprender a amar conscientemente e a colocar o desejo ou a pulsação sexual a serviço do amor, do crescimento interior e da liberdade.
PK: um estudo de caso
No meu caso pessoal, desde cedo senti que devia fazer algo em relação à maneira de viver a sexualidade dentro do Yoga, mas que a castidade estava fora das minhas possibilidades, principalmente durante a explosão hormonal da adolescência.
Assim, optei pelo casamento, como muitos yogis fizeram ao longo da história, desde os tempos védicos.
A vantagem de viver um relacionamento único e cultivar a fidelidade nele é que os dois indivíduos no casal têm uma bela chance de crescer juntos.
E isso é lindo e desafiante pois, ao invés da relação ser um lugar onde temos que suportar o outro, ela se torna mas um campo de possibilidades onde cultivamos valores como a tolerância, a amizade, a paciência e a não-violência e, consequentemente, amadurecemos no amor e nos aproximamos da meta do Yoga.
Olhando para trás, vejo como foi importante essa decisão: num relacionamento de longo prazo percebemos o quanto é importante o espaço compartilhado, pois é nele que podemos expor as nossas fragilidades ou problemas perante o outro e, com o apoio dele, superá-las.
Nesse sentido, o voto de fidelidade é essencial pois é através dele que se constróem a confiança, o respeito e a tranquilidade necessários para que o amor cresça e se desenvolva.
Brahmācārya, a bigorna que molda o praticante
O ferreiro usa o metal em estado bruto para, à força de calor e marteladas, dar a forma aos objetos que cria.
Para tanto, precisa de um apoio, uma base sólida sobre a qual possa transformar o mineral: a bigorna, que é capaz de suportar a temperatura e as batidas, e é mais e firme que os metais que sobre ela se moldam.
Se a sexualidade é uma das forças que definem, e muitas vezes governam, os desejos dos humanos, então o voto de brahmācārya poderia ser considerado uma espécie de bigorna onde se molda o carácter do praticante.
O praticante deve pensar em forjar seu próprio carácter, e consequentemente, construir seus relacionamentos, da mesma maneira que o ferreiro dá forma aos instrumentos que fabrica ao calor do fogo.
Se essa força e essa motivação estiverem ausentes, há uma grande chance de o aspirante se perder no meio do caminho, vítima dos seus próprios temas mal resolvidos.
Assim, penso que, se um praticante ou professor de Yoga não for capaz de lidar de maneira saudável e fluida com esta questão, deveria procurar um bom terapeuta ou psiquiatra e abandonar a prática até resolver a questão, como deveríam ter feito as pessoas mencionadas no início deste texto, antes de vitimizar pessoas inocentes.
O voto na prática
Se formos considerar o voto de brahmācārya como coerência relacional ou fidelidade, então estamos frente a uma bela oportunidade para compreender os mecanismo do desejo e as maneiras que temos para lidar construtivamente com ele.
Talvez o segredo para aplicar este voto seja agir sem reagir. Noutras palavras, nos tornar mais forte que as nossas próprias fraquezas, que nos levam a realizar ações impulsivas ou indesejáveis.
Uma solução viável para se relacionar saudavelmente com os próprios desejos é evitar se deixar arrastar pelo primeiro impulso e cultivar nirodhaḥ, a não-identificação com eles.
Assim, quando vemos que há alguma possibilidade de entrar numa contingência indesejável, poderemos manter a testosterona sob controle e ao mesmo tempo evitar vitimizar os demais com nossos desejos.
Uma boa maneira de evitar o primeiro impulso é simplesmente respirar, olhar para o relógio e dizer: “agora são as 11:00h e percebo que cresce em mim este desejo”.
Assim, centrando-nos tranquilamente no fluir da respiração por um momento, poderemos depois pensar: “agora são as 11:20h e percebo que esse desejo se enfraqueceu”.
Assim, observando os desejos na distância até que eles percam a força, é bem provável que possamos evitar as ações e reações que aconteceriam se nos deixássemos arrastar por eles.
Lembremos que a mente nada mais é do que uma sequência de pensamentos. Alguns deles vêm na forma de desejos mas, se eles não forem alimentados, simplesmente se debilitam e desaparecem.
Ignorar ou reprimir a pulsação sexual, como dizemos antes, não resolve a questão.
Porém, se nos dermos a chance de, honestamente, trabalhar nela no espaço sagrado que é um relacionamento sólido e sincero, não afastaremos apenas os perigos de ferir os demais e perder a própria dignidade.
Ainda teremos em mãos uma valiosa ferramenta com a qual poderemos trazer o Yoga para esse aspecto também sagrado da nossa existência que é a sexualidade.
॥ हरिः ॐ ॥
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