As Faces do Medo: A Moderna Caça às Bruxas e a Superstição Assassina na Índia
Por Marco Faustino
A prática moderna de caça às bruxas na Índia inclui a violência e crenças que até hoje levam à tortura e o assassinato de supostas bruxas. Os governos estaduais tentam resolver o problema, mas enfrentam grandes obstáculos.
Nesta postagem vamos entrar em um universo um pouco inexplorado pela mídia ocidental ou que pelo menos não tem tanta repercussão quanto o assunto merece ter. Talvez seja porque cada país e região tem seus próprios problemas, que se tornam tão ou mais graves do que um problema de um algum outro país mais distante. Vamos saber mais um pouco mais sobre o assunto?
Quando pensamos sobre bruxas queimando muitas vezes consideramos como uma metáfora, um evento isolado que aconteceu há centenas de anos em Salém ou até mesmo uma série de TV americana de mesmo nome. No entanto, em muitas partes do mundo, viúvas idosas vivem com medo de serem mortas como "bruxas" quando um vizinho adoece ou então o gado morre de uma maneira inesperada. E neste cenário a Índia representa um paradoxo dos tempos modernos. Por um lado, sem dúvida alguma é uma das maiores democracias do mundo e tem uma economia em rápido crescimento. Já por outro, a maioria da população permanece pobre, e cidadãos indianos, mesmo aqueles que possuam certo grau de instrução, frequentemente recorrem à superstição para curar doenças, encontrar o seu amor, compreender os maus acontecimentos ou simplesmente evitar o azar.
A superstição moderna tem consequências mortais, que lembram todo o frenesi a respeito da bruxaria nos Estados Unidos, mais precisamente em Salém. Entretanto, na Índia, uma pessoa acusada de ser uma "dayan" ou bruxa pode ser torturada, estuprada, agredida até a morte ou queimada viva. As vítimas muitas vezes são mulheres solteiras mais velhas, geralmente viúvas, mas também podem ser homens e inclusive crianças. Isso mesmo que você leu, crianças. Em alguns casos são acusadas simplesmente devido a sua aparência, ou seja, por serem "feias".
Um relatório de 2002 de uma newsletter chamada Skeptical Briefs descreveu uma equipe de médicos e assistentes sociais que conduziram campanhas educacionais em vilarejos rurais da Índia para prevenir a violência gerada pela crença na bruxaria. Apesar desses esforços, a crença supersticiosa na bruxaria continua a assolar partes da Índia, resultando em uma série de abusos ou até mesmo levando pessoas a morte.
Dados mais recentes do governo indiano mostram que 119 pessoas foram mortas em 2012, sendo que a principalmente "motivação" dos assassinatos foi a bruxaria. De acordo com o jornal "Times of India", um relatório do Escritório Nacional de Registros de Crimes, revelou que mais de 2.100 mulheres foram assassinadas por motivo de bruxaria, entre 1991 e 2010. Sem dúvida alguma os números são bem maiores do que esses, uma vez que muitos casos não são registrados ou as autoridades se recusam a registrá-los.
As alegações de bruxaria que resultam em assassinato coletivo têm sido uma parte triste da história rural da Índia. O professor Ajay Skaria, por exemplo, estudou a tortura e o assassinato de mulheres que foram acusadas de serem bruxas na Índia britânica. Esta prática continuou, embora com certa irregularidade, até os dias atuais.
Um documentário produzido pela TV Al Jazeera em 2013, explorou a temática sobre as vidas de mulheres que foram acusadas de praticar bruxaria. Para aquelas que têm a sorte de viver após as acusações, muitas vezes são forçadas a se mudarem para um novo local, sem recursos financeiros para recomeçar a vida. Muitas das acusações têm raízes em disputas de propriedade, política local e doenças, que então se transformam em alegações de bruxaria e por fim resultam na violência. Nos últimos anos, tem havido um esforço concentrado para ajudar as mulheres que fugiram de seus vilarejos por causa da perseguição. Entretanto, de acordo com a Al Jazeera, ao menos naquela época, existiam apenas três estados indianos que possuíam uma legislação para abordar acusações de bruxaria, sendo que existem 28 no total.
Um desses governos estaduais que aprovou uma lei nesse sentido é Jharkhand, um estado no leste da Índia, e que por sua vez está em 25º lugar de um ranking de 28 estados indianos, em termos de alfabetização. O estado é famoso por uma religião indiana chamada Sarna, derivado da tradição oral, na qual não trata as mulheres de maneira igual aos homens. A situação se agrava, pois as mulheres são consideradas cidadãos de segunda classe. Mulheres solteiras, especialmente as viúvas, são alvos de acusações de bruxaria.
Em 2001, o governo de Jharkhand aprovou uma lei chamada "Jharkhand Dayan Pratha Act" ("Lei de Prevenção a Prática de Bruxaria", em português), na qual tenta proteger as mulheres contra o tratamento desumano e fornece as vítimas de abusos um recurso judicial para se defenderem. De qualquer forma algumas pessoas têm descrito a caça às bruxas como um fenômeno "comum" no estado, e a lei não eliminou a prática.
Nos últimos três anos, houve vários assassinatos notáveis envolvendo acusações de bruxaria. Em 2012, quatro pessoas foram assassinadas, em cerca de um mês, em Jharkhand. Se os suspeitos fossem condenados por violar a lei "Jharkhand Dayan Pratha Act", eles teriam que enfrentar uma pena de reclusão bem mais longa do que se eles apenas tivessem cometido um assassinato comum. Bimla Pradhan, ministro da Assistência Social de Jharkhand, disse naquele ano, que o governo financiou uma campanha de conscientização para acabar com a superstição que "levou a serem cometidas atrocidades contra as mulheres".
No entanto, em Novembro de 2013, uma mãe com 50 anos de idade e sua filha solteira com 30, em Jharkhand, foram arrancadas de casa por moradores locais, que as levaram para uma floresta próxima e cortaram suas gargantas. O marido já havia morrido alguns anos antes, e depois disso os boatos começaram a surgir e diziam que as mulheres eram bruxas. Os moradores culparam as mulheres simplesmente porque diversas crianças do vilarejo adoeceram. Em relação aos assassinatos, um inspetor de polícia chamado Jyoti Prakash, disse na época que: "... Tudo o que posso dizer é que as mulheres pareciam ter sido mortas devido a bruxaria".
O Rajasthan é um estado bem peculiar na Índia, não somente porque é o maior, mas também por compartilhar uma fronteira com o Paquistão. Nos últimos anos, o governo aprovou uma lei chamada de "Rajasthan Women Bill" (basicamente uma lei de prevenção e proteção contra atrocidades por bruxaria), que torna ilegal chamar uma mulher de "dayan" ou acusar uma mulher de realizar a bruxaria que resulte em algum tipo de agressão. Uma pessoa declarada culpada pode ser sentenciada no máximo a três anos de reclusão. Se uma mulher é levada a cometer suicídio por causa de acusações de bruxaria, o acusador pode receber uma multa e até dez anos de reclusão. A lei veio em resposta a décadas de agressões físicas e verbais, incluindo marcar os rostos de mulheres acusadas de bruxaria. Segundo uma matéria do "The New York Times" de 2012, muitas vezes as pessoas eram forçadas a colocar suas mãos em um buraco no chão repleto de cobras, em uma espécie de teste. Se a pessoa fosse mordida seria uma espécie de prova de sua culpa.
Bruxaria e assassinato não são exclusivos apenas dessas regiões. Um grupo de moradores de Odisha, um estado predominantemente rural localizado na costa leste, agrediu e forçou três pessoas, sendo que duas eram mulheres, a andarem nuas pelo vilarejo. Em novembro de 2013, um menino foi morto no mesmo estado e a polícia prendeu duas pessoas acusadas de seu assassinato, cuja finalidade era o "sacrifício humano".
Em 2005, Chhattisgarh, um estado na região central da Índia, aprovou uma lei de prevenção contra atrocidades por bruxaria para tentar conter a violência e os assassinatos. Em 2013 duas mulheres que tinham por volta de 50 anos foram mortas por três rapazes. Segundo a polícia, o pai de um menino estava doente e os pais dos outros dois garotos tinham morrido. Acreditando que as mulheres eram as culpadas, eles "questionaram as mulheres sobre o envolvimento em práticas de bruxaria, mas elas se recusaram a falar. Isso enfureceu os rapazes que primeiramente as estrangularam e em seguida cortaram suas gargantas". No mesmo ano, no vilarejo de Shivni, também no estado de Chhattisgarh, uma garota adoeceu repentinamente e logo os moradores locais suspeitaram de bruxaria. Isso os levou a reunirem e testarem toda a população feminina do vilarejo. Elas foram forçadas pelo xamã, a beber uma bebida feita a partir de uma erva venenosa, que segundo o que ele dizia, iria resultar em uma confissão. Na verdade isso resultou em cerca de 30 mulheres que foram hospitalizadas, e pelo menos 5 em estado grave.
Em 2011, uma mãe e filha foram acusadas de serem bruxas em Assam, mas a polícia descobriu mais tarde que as acusações foram utilizadas como um pretexto para estuprá-las. De acordo com o governo de Assam, entre 2006 e 2012, havia cerca de 105 casos que envolviam "caça às bruxas".
Em muitos casos, grupos de moradores estão envolvidos nas agressões as supostas "bruxas". Nem as leis, e nem mesmo a presença de jornalistas têm sido capazes de impedir a caça às bruxas. Em 2008, uma mulher foi contratada por um homem para usar a magia para melhorar a saúde de sua esposa doente.
Quando a condição de sua esposa piorou, ele começou a bater na mulher e cinco outros moradores se juntaram a ele na agressão. Ela foi amarrada em uma árvore, golpeada por diversas vezes e teve seu cabelo cortado enquanto um jornalista filmava o que acontecia. O câmera decidiu não tentar parar de gravar o que estava acontecendo e filmou tudo antes de chamar a polícia.
As mulheres não são as únicas vítimas da "caça às bruxas". Em julho de 2012, um homem idoso e sua esposa foram forçados a comer dejetos humanos (foi o nome menos pior que consegui dar para isso) em Jharkhand. Os dois foram acusados de praticar bruxaria, que supostamente resultou na morte do gado local. Um mês depois, em outro vilarejo no estado, um homem foi arrancado da sua casa e enterrado vivo por supostamente praticar bruxaria. Em 2013, um homem idoso também foi condenado a comer dejetos humanos em Meghalaya, um estado no norte da Índia. Ele foi acusado de praticar bruxaria quando quatro meninas ficaram doentes e começaram a ter sonhos com cobras. Os moradores se reuniram e decidiram sobre o seu castigo. O assistente do líder do vilarejo defendeu o que foi feito, dizendo que após o evento, a saúde das meninas melhorou.
No início de agosto deste ano, cerca de 50 moradores em uma comunidade rural no estado de Jharkhand foram presos pela morte de cinco mulheres, que eles acreditavam que estivessem praticando bruxaria, incluindo uma mãe e sua filha.
A polícia local informou que na noite do dia 7 de agosto, os moradores de um vilarejo chamado Kanjia, saíram de suas casas armados com tijolos, paus e facas e atacaram as cinco mulheres. Entretanto, o ataque brutal as mulheres foi supostamente desencadeado pela morte de um jovem não identificado de 17 anos de idade, que morreu quatro dias antes. Um feiticeiro de um vilarejo vizinho atribuiu sua morte a bruxaria.
"Grupos de moradores usaram varas de madeira e armas afiadas para golpear e matar as mulheres. Eles culparam as mulheres pela desgraça que estava acontecendo no vilarejo e alegaram que era culpa delas que muitas pessoas estavam adoecendo", disse Bandana Bakhla, inspetor da polícia local.
Após os moradores terem decidido "resolver o problema uma vez por todas", alguns jovens arrastaram uma senhora chamada Etwaria Kholkho, 53 anos, para fora de sua casa, acusando-a de ser uma bruxa. De acordo com o jornal "Indian Express", os jovens exigiram que ela desse o nome de outras "bruxas" do vilarejo. Ela deu o nome de três outras mulheres com idades entre 40 e 55 anos, entre elas sua própria mãe, Ratiya Kholkho.
"As mulheres foram arrastadas para fora de suas casas enquanto estavam dormindo e foram espancadas até a morte pelos moradores, por eles suspeitarem que elas fossem bruxas... Algumas foram apedrejadas até a morte. O vilarejo inteiro estava envolvido no crime", disse SN Pradhan, porta-voz da polícia de Jharkhand.
"Eles invadiram nossa casa logo após a meia noite. Imploramos por misericórdia, mas eles praticamente não ouviram o nosso apelo", disse um familiar de uma das vítimas. Testemunhas disseram que os agressores simplesmente colocaram os corpos em sacos e os descartaram como lixo na região fronteiriça do vilarejo.
"O que é mais chocante é o suposto envolvimento de jovens que estão estudando para se formarem", disse Javed Khan, um repórter local. O feiticeiro que incitou a multidão vingativa não estava entre os 50 presos. Segundo a polícia, os moradores assassinos não mostraram qualquer remorso.
"O que você pode esperar da sociedade, quando até mesmo os jovens instruídos se juntam à multidão enfurecida?", disse Gangotri Kujur, um legislador local.
Não há solução fácil para acabar com essas caças às bruxas. Grupos de todas as esferas têm tentado acabar com a violência, desde bruxas que autoproclamam protetoras das mulheres, mas que somente enviam "energias positivas" as vítimas de abusos, até grupos de ativistas que realmente têm conseguido avançar, mesmo que pouco a pouco, no combate a esses tipos de crimes. Ao mesmo tempo que eles vêm pressionando os governos a aprovar leis mais rigorosas para punir a violência decorrente de alegações de bruxaria, diversos outros grupos querem mudar as percepções em relação às mulheres e crença sobrenatural. Na verdade, a legislação não é uma cura para a superstição, mas sim o aprimoramento do pensamento crítico.
O medo da população e incompreensão não se limita a Índia, é claro. Em um artigo publicado por Jennifer Latson no site da revista Time, em outubro de 2014, bruxas foram comparadas como terroristas. Recentemente, em uma notícia do jornal "NY Daily News", um xerife do estado americano da Florida enfureceu algumas bruxas locais quando ele as culpou pelo assassinato de uma mãe e seus dois filhos.
A ideia de magia e feitiçaria que é vendida, principalmente pela indústria, nos faz acreditar em poderes ocultos, em belas mulheres maquiadas que lançam feitiços poderosos e fazem poções para combater até mesmo seres malignos. Existem, é claro, outros filmes que seguem o estereótipo da bruxa da branca de neve, tentando nos impressionar e mostrar o quão perigosas, deformadas e "feias" essas pessoas podem ser. Sem contar, é claro, tantas outras que fazem da magia sua profissão, vendendo a ideia, por exemplo, de limpeza energética até mesmo para empresas do Vale do Silício. Entretanto, esse é um assunto que vai muito além de uma coleção de livros ou filmes do Harry Potter.
Fala-se muito em respeitar a crença, a religião, em preservar costumes e tradições. Por um lado temos todo um aspecto eventualmente econômico envolvido, uma vez que sob condições extremamente precárias e sob uma édige corrompida do governo local, fazem com que a população dependa exclusivamente de seus deuses e guias espirituais que se julgam no direito de serem intermediários da Justiça. Por outro temos todo o aspecto eventualmente vil do ser humano, sendo que este não tem limites, independente da alfabetização, do ceticismo ou criação, independente do deus ou humano que um dia deu-lhe a vida, concedendo-lhe o livre arbítrio para apontar o dedo, não para cima, mas para seu semelhante.
Não é de hoje que mulheres são punidas por serem solteiras. No passado colégios católicos viam com maus olhos quando um aluno de uma mãe solteira tentava concorrer a uma vaga. Não é de hoje que pessoas que carregam cicatrizes em seus corpos, vítimas de violência ou doença, e portanto são excluídas da sociedade. Não é de hoje que mulheres são estupradas por bruxaria, sendo que eram por muito menos durante a invasão inglesa a França de D'Arc ou na desastrosa invasão americana ao Vietnã. Não é de hoje que mulheres são punidas constantemente e diariamente por não serem como as que aparecem em capas de revista ou entre aquelas mais populares em instituições de ensino. Não é de hoje que elas carregam nas costas o peso da lei natural de Darwin, uma adaptação sofrida em um ambiente onde os mais fortes sobrevivem.
A lista de atrocidades é triste, extensa e faz você respirar fundo quando termina de ler a matéria. Infelizmente enquanto você lê o que estou escrevendo, mais uma mulher, homem ou criança pode estar sendo morta e talvez jamais iremos saber seus nomes e suas histórias. Enquanto isso, você vai aprender sobre monções, sobre Gandhi ou eventualmente lerá Mahabharata. Talvez se encante com o elenco brasileiro ao tentar retratar a beleza indiana em uma novela ou o sonho de amor de infância de um jovem que não queria ser bem um milionário. De qualquer forma existe uma India em cada país do mundo, mesmo nos mais desenvolvidos, e talvez exista uma Índia dentro de cada um de nós. Pode não ser a Índia que bate, mas aquela que apanha.
Criação/Adaptação/Tradução: Marco Faustino
Fontes:
http://www.csicop.org/si/show/modern_witch_hunting_and_superstitious_murder_in_india
http://jezebel.com/5729684/witch-hunts-on-the-rise-in-rural-india
http://time.com/3532279/witches-halloween-salem/
http://www.nydailynews.com/news/national/witches-outraged-fla-cops-blame-murder-witchcraft-article-1.2316589
http://www.dailymail.co.uk/news/article-3190287/5-women-accused-witches-beaten-death-India.html
http://www.inquisitr.com/2319942/indian-villagers-murder-mother-and-daughter-accused-of-witchcraft/
http://www.gdnonline.com/Details/24372/Witch-killings-haunt-Indias-remote-villages/22557
http://www.theguardian.com/world/2015/aug/08/five-women-killed-india-jharkhand-villagers-suspecting-witchcraft
Nesta postagem vamos entrar em um universo um pouco inexplorado pela mídia ocidental ou que pelo menos não tem tanta repercussão quanto o assunto merece ter. Talvez seja porque cada país e região tem seus próprios problemas, que se tornam tão ou mais graves do que um problema de um algum outro país mais distante. Vamos saber mais um pouco mais sobre o assunto?
Quando pensamos sobre bruxas queimando muitas vezes consideramos como uma metáfora, um evento isolado que aconteceu há centenas de anos em Salém ou até mesmo uma série de TV americana de mesmo nome. No entanto, em muitas partes do mundo, viúvas idosas vivem com medo de serem mortas como "bruxas" quando um vizinho adoece ou então o gado morre de uma maneira inesperada. E neste cenário a Índia representa um paradoxo dos tempos modernos. Por um lado, sem dúvida alguma é uma das maiores democracias do mundo e tem uma economia em rápido crescimento. Já por outro, a maioria da população permanece pobre, e cidadãos indianos, mesmo aqueles que possuam certo grau de instrução, frequentemente recorrem à superstição para curar doenças, encontrar o seu amor, compreender os maus acontecimentos ou simplesmente evitar o azar.
A superstição moderna tem consequências mortais, que lembram todo o frenesi a respeito da bruxaria nos Estados Unidos, mais precisamente em Salém. Entretanto, na Índia, uma pessoa acusada de ser uma "dayan" ou bruxa pode ser torturada, estuprada, agredida até a morte ou queimada viva. As vítimas muitas vezes são mulheres solteiras mais velhas, geralmente viúvas, mas também podem ser homens e inclusive crianças. Isso mesmo que você leu, crianças. Em alguns casos são acusadas simplesmente devido a sua aparência, ou seja, por serem "feias".
Um relatório de 2002 de uma newsletter chamada Skeptical Briefs descreveu uma equipe de médicos e assistentes sociais que conduziram campanhas educacionais em vilarejos rurais da Índia para prevenir a violência gerada pela crença na bruxaria. Apesar desses esforços, a crença supersticiosa na bruxaria continua a assolar partes da Índia, resultando em uma série de abusos ou até mesmo levando pessoas a morte.
Dados mais recentes do governo indiano mostram que 119 pessoas foram mortas em 2012, sendo que a principalmente "motivação" dos assassinatos foi a bruxaria. De acordo com o jornal "Times of India", um relatório do Escritório Nacional de Registros de Crimes, revelou que mais de 2.100 mulheres foram assassinadas por motivo de bruxaria, entre 1991 e 2010. Sem dúvida alguma os números são bem maiores do que esses, uma vez que muitos casos não são registrados ou as autoridades se recusam a registrá-los.
As alegações de bruxaria que resultam em assassinato coletivo têm sido uma parte triste da história rural da Índia. O professor Ajay Skaria, por exemplo, estudou a tortura e o assassinato de mulheres que foram acusadas de serem bruxas na Índia britânica. Esta prática continuou, embora com certa irregularidade, até os dias atuais.
Um documentário produzido pela TV Al Jazeera em 2013, explorou a temática sobre as vidas de mulheres que foram acusadas de praticar bruxaria. Para aquelas que têm a sorte de viver após as acusações, muitas vezes são forçadas a se mudarem para um novo local, sem recursos financeiros para recomeçar a vida. Muitas das acusações têm raízes em disputas de propriedade, política local e doenças, que então se transformam em alegações de bruxaria e por fim resultam na violência. Nos últimos anos, tem havido um esforço concentrado para ajudar as mulheres que fugiram de seus vilarejos por causa da perseguição. Entretanto, de acordo com a Al Jazeera, ao menos naquela época, existiam apenas três estados indianos que possuíam uma legislação para abordar acusações de bruxaria, sendo que existem 28 no total.
Gurubari Mahato, 35 anos, foi acusada de lançar um feitiço por uma mulher que desmaiou pouco antes de seu casamento |
Em 2001, o governo de Jharkhand aprovou uma lei chamada "Jharkhand Dayan Pratha Act" ("Lei de Prevenção a Prática de Bruxaria", em português), na qual tenta proteger as mulheres contra o tratamento desumano e fornece as vítimas de abusos um recurso judicial para se defenderem. De qualquer forma algumas pessoas têm descrito a caça às bruxas como um fenômeno "comum" no estado, e a lei não eliminou a prática.
Nos últimos três anos, houve vários assassinatos notáveis envolvendo acusações de bruxaria. Em 2012, quatro pessoas foram assassinadas, em cerca de um mês, em Jharkhand. Se os suspeitos fossem condenados por violar a lei "Jharkhand Dayan Pratha Act", eles teriam que enfrentar uma pena de reclusão bem mais longa do que se eles apenas tivessem cometido um assassinato comum. Bimla Pradhan, ministro da Assistência Social de Jharkhand, disse naquele ano, que o governo financiou uma campanha de conscientização para acabar com a superstição que "levou a serem cometidas atrocidades contra as mulheres".
No entanto, em Novembro de 2013, uma mãe com 50 anos de idade e sua filha solteira com 30, em Jharkhand, foram arrancadas de casa por moradores locais, que as levaram para uma floresta próxima e cortaram suas gargantas. O marido já havia morrido alguns anos antes, e depois disso os boatos começaram a surgir e diziam que as mulheres eram bruxas. Os moradores culparam as mulheres simplesmente porque diversas crianças do vilarejo adoeceram. Em relação aos assassinatos, um inspetor de polícia chamado Jyoti Prakash, disse na época que: "... Tudo o que posso dizer é que as mulheres pareciam ter sido mortas devido a bruxaria".
O Rajasthan é um estado bem peculiar na Índia, não somente porque é o maior, mas também por compartilhar uma fronteira com o Paquistão. Nos últimos anos, o governo aprovou uma lei chamada de "Rajasthan Women Bill" (basicamente uma lei de prevenção e proteção contra atrocidades por bruxaria), que torna ilegal chamar uma mulher de "dayan" ou acusar uma mulher de realizar a bruxaria que resulte em algum tipo de agressão. Uma pessoa declarada culpada pode ser sentenciada no máximo a três anos de reclusão. Se uma mulher é levada a cometer suicídio por causa de acusações de bruxaria, o acusador pode receber uma multa e até dez anos de reclusão. A lei veio em resposta a décadas de agressões físicas e verbais, incluindo marcar os rostos de mulheres acusadas de bruxaria. Segundo uma matéria do "The New York Times" de 2012, muitas vezes as pessoas eram forçadas a colocar suas mãos em um buraco no chão repleto de cobras, em uma espécie de teste. Se a pessoa fosse mordida seria uma espécie de prova de sua culpa.
Vítimas da caça às bruxas em Guwahati, nordeste da Índia |
Em 2005, Chhattisgarh, um estado na região central da Índia, aprovou uma lei de prevenção contra atrocidades por bruxaria para tentar conter a violência e os assassinatos. Em 2013 duas mulheres que tinham por volta de 50 anos foram mortas por três rapazes. Segundo a polícia, o pai de um menino estava doente e os pais dos outros dois garotos tinham morrido. Acreditando que as mulheres eram as culpadas, eles "questionaram as mulheres sobre o envolvimento em práticas de bruxaria, mas elas se recusaram a falar. Isso enfureceu os rapazes que primeiramente as estrangularam e em seguida cortaram suas gargantas". No mesmo ano, no vilarejo de Shivni, também no estado de Chhattisgarh, uma garota adoeceu repentinamente e logo os moradores locais suspeitaram de bruxaria. Isso os levou a reunirem e testarem toda a população feminina do vilarejo. Elas foram forçadas pelo xamã, a beber uma bebida feita a partir de uma erva venenosa, que segundo o que ele dizia, iria resultar em uma confissão. Na verdade isso resultou em cerca de 30 mulheres que foram hospitalizadas, e pelo menos 5 em estado grave.
Em 2008, uma mulher foi amarrada em uma árvore, espancada e teve seu cabelo cortado enquanto um jornalista registrava toda a agressão em vídeo |
Em muitos casos, grupos de moradores estão envolvidos nas agressões as supostas "bruxas". Nem as leis, e nem mesmo a presença de jornalistas têm sido capazes de impedir a caça às bruxas. Em 2008, uma mulher foi contratada por um homem para usar a magia para melhorar a saúde de sua esposa doente.
Quando a condição de sua esposa piorou, ele começou a bater na mulher e cinco outros moradores se juntaram a ele na agressão. Ela foi amarrada em uma árvore, golpeada por diversas vezes e teve seu cabelo cortado enquanto um jornalista filmava o que acontecia. O câmera decidiu não tentar parar de gravar o que estava acontecendo e filmou tudo antes de chamar a polícia.
As mulheres não são as únicas vítimas da "caça às bruxas". Em julho de 2012, um homem idoso e sua esposa foram forçados a comer dejetos humanos (foi o nome menos pior que consegui dar para isso) em Jharkhand. Os dois foram acusados de praticar bruxaria, que supostamente resultou na morte do gado local. Um mês depois, em outro vilarejo no estado, um homem foi arrancado da sua casa e enterrado vivo por supostamente praticar bruxaria. Em 2013, um homem idoso também foi condenado a comer dejetos humanos em Meghalaya, um estado no norte da Índia. Ele foi acusado de praticar bruxaria quando quatro meninas ficaram doentes e começaram a ter sonhos com cobras. Os moradores se reuniram e decidiram sobre o seu castigo. O assistente do líder do vilarejo defendeu o que foi feito, dizendo que após o evento, a saúde das meninas melhorou.
O Mais Recente Caso de Mortes Relacionadas a Caça às Bruxas na Índia
No início de agosto deste ano, cerca de 50 moradores em uma comunidade rural no estado de Jharkhand foram presos pela morte de cinco mulheres, que eles acreditavam que estivessem praticando bruxaria, incluindo uma mãe e sua filha.
A polícia local informou que na noite do dia 7 de agosto, os moradores de um vilarejo chamado Kanjia, saíram de suas casas armados com tijolos, paus e facas e atacaram as cinco mulheres. Entretanto, o ataque brutal as mulheres foi supostamente desencadeado pela morte de um jovem não identificado de 17 anos de idade, que morreu quatro dias antes. Um feiticeiro de um vilarejo vizinho atribuiu sua morte a bruxaria.
"Grupos de moradores usaram varas de madeira e armas afiadas para golpear e matar as mulheres. Eles culparam as mulheres pela desgraça que estava acontecendo no vilarejo e alegaram que era culpa delas que muitas pessoas estavam adoecendo", disse Bandana Bakhla, inspetor da polícia local.
Cerca de 50 moradores em uma comunidade rural no estado de Jharkhand foram presos pela morte de cinco mulheres, que eles acreditavam que estivessem praticando bruxaria, incluindo uma mãe e sua filha. |
"As mulheres foram arrastadas para fora de suas casas enquanto estavam dormindo e foram espancadas até a morte pelos moradores, por eles suspeitarem que elas fossem bruxas... Algumas foram apedrejadas até a morte. O vilarejo inteiro estava envolvido no crime", disse SN Pradhan, porta-voz da polícia de Jharkhand.
"Eles invadiram nossa casa logo após a meia noite. Imploramos por misericórdia, mas eles praticamente não ouviram o nosso apelo", disse um familiar de uma das vítimas. Testemunhas disseram que os agressores simplesmente colocaram os corpos em sacos e os descartaram como lixo na região fronteiriça do vilarejo.
Sukmar Kholkho, 19 anos, filho de Etwaria Kholkho, que recentemente foi assassinada em Kanjia, após ser acusada de praticar bruxaria |
"O que você pode esperar da sociedade, quando até mesmo os jovens instruídos se juntam à multidão enfurecida?", disse Gangotri Kujur, um legislador local.
Não há solução fácil para acabar com essas caças às bruxas. Grupos de todas as esferas têm tentado acabar com a violência, desde bruxas que autoproclamam protetoras das mulheres, mas que somente enviam "energias positivas" as vítimas de abusos, até grupos de ativistas que realmente têm conseguido avançar, mesmo que pouco a pouco, no combate a esses tipos de crimes. Ao mesmo tempo que eles vêm pressionando os governos a aprovar leis mais rigorosas para punir a violência decorrente de alegações de bruxaria, diversos outros grupos querem mudar as percepções em relação às mulheres e crença sobrenatural. Na verdade, a legislação não é uma cura para a superstição, mas sim o aprimoramento do pensamento crítico.
O medo da população e incompreensão não se limita a Índia, é claro. Em um artigo publicado por Jennifer Latson no site da revista Time, em outubro de 2014, bruxas foram comparadas como terroristas. Recentemente, em uma notícia do jornal "NY Daily News", um xerife do estado americano da Florida enfureceu algumas bruxas locais quando ele as culpou pelo assassinato de uma mãe e seus dois filhos.
Conclusão
A ideia de magia e feitiçaria que é vendida, principalmente pela indústria, nos faz acreditar em poderes ocultos, em belas mulheres maquiadas que lançam feitiços poderosos e fazem poções para combater até mesmo seres malignos. Existem, é claro, outros filmes que seguem o estereótipo da bruxa da branca de neve, tentando nos impressionar e mostrar o quão perigosas, deformadas e "feias" essas pessoas podem ser. Sem contar, é claro, tantas outras que fazem da magia sua profissão, vendendo a ideia, por exemplo, de limpeza energética até mesmo para empresas do Vale do Silício. Entretanto, esse é um assunto que vai muito além de uma coleção de livros ou filmes do Harry Potter.
Fala-se muito em respeitar a crença, a religião, em preservar costumes e tradições. Por um lado temos todo um aspecto eventualmente econômico envolvido, uma vez que sob condições extremamente precárias e sob uma édige corrompida do governo local, fazem com que a população dependa exclusivamente de seus deuses e guias espirituais que se julgam no direito de serem intermediários da Justiça. Por outro temos todo o aspecto eventualmente vil do ser humano, sendo que este não tem limites, independente da alfabetização, do ceticismo ou criação, independente do deus ou humano que um dia deu-lhe a vida, concedendo-lhe o livre arbítrio para apontar o dedo, não para cima, mas para seu semelhante.
Não é de hoje que mulheres são punidas por serem solteiras. No passado colégios católicos viam com maus olhos quando um aluno de uma mãe solteira tentava concorrer a uma vaga. Não é de hoje que pessoas que carregam cicatrizes em seus corpos, vítimas de violência ou doença, e portanto são excluídas da sociedade. Não é de hoje que mulheres são estupradas por bruxaria, sendo que eram por muito menos durante a invasão inglesa a França de D'Arc ou na desastrosa invasão americana ao Vietnã. Não é de hoje que mulheres são punidas constantemente e diariamente por não serem como as que aparecem em capas de revista ou entre aquelas mais populares em instituições de ensino. Não é de hoje que elas carregam nas costas o peso da lei natural de Darwin, uma adaptação sofrida em um ambiente onde os mais fortes sobrevivem.
A lista de atrocidades é triste, extensa e faz você respirar fundo quando termina de ler a matéria. Infelizmente enquanto você lê o que estou escrevendo, mais uma mulher, homem ou criança pode estar sendo morta e talvez jamais iremos saber seus nomes e suas histórias. Enquanto isso, você vai aprender sobre monções, sobre Gandhi ou eventualmente lerá Mahabharata. Talvez se encante com o elenco brasileiro ao tentar retratar a beleza indiana em uma novela ou o sonho de amor de infância de um jovem que não queria ser bem um milionário. De qualquer forma existe uma India em cada país do mundo, mesmo nos mais desenvolvidos, e talvez exista uma Índia dentro de cada um de nós. Pode não ser a Índia que bate, mas aquela que apanha.
Criação/Adaptação/Tradução: Marco Faustino
Fontes:
http://www.csicop.org/si/show/modern_witch_hunting_and_superstitious_murder_in_india
http://jezebel.com/5729684/witch-hunts-on-the-rise-in-rural-india
http://time.com/3532279/witches-halloween-salem/
http://www.nydailynews.com/news/national/witches-outraged-fla-cops-blame-murder-witchcraft-article-1.2316589
http://www.dailymail.co.uk/news/article-3190287/5-women-accused-witches-beaten-death-India.html
http://www.inquisitr.com/2319942/indian-villagers-murder-mother-and-daughter-accused-of-witchcraft/
http://www.gdnonline.com/Details/24372/Witch-killings-haunt-Indias-remote-villages/22557
http://www.theguardian.com/world/2015/aug/08/five-women-killed-india-jharkhand-villagers-suspecting-witchcraft
Fonte:http://www.assombrado.com.br/2015/09/a-moderna-caca-as-bruxas-e-supersticao.html
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